por Walter Alexandre Bussamara* | Valor Econômico
Recentemente, três específicas ingerências públicas notadamente
normativas reforçaram-nos um já crescente sentimento pessoal de
irresignação jurídica. Todas, ao estilo de uma mentalidade estadista que
parece não querer se dissociar das históricas entranhas nacionais de um
autoritarismo já sepultado.
Nossa primeira aflição decorrera do atual bloqueio de emissão de nota fiscal eletrônica
por prestadores de serviços em débito com a municipalidade paulistana
em face do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS), a teor do
quanto disposto na Instrução Normativa nº 19/11, da Subsecretaria da
Receita Municipal (Surem), enquanto órgão integrante da estrutura básica
da Secretaria Municipal de Finanças.
Igualmente, também nos chamaram a atenção as inovações introduzidas
pelas Fazendas estaduais paulista e pernambucana, por conta,
respectivamente, do comunicado CAT nº 5/12 e do Decreto nº 37.832, de 2012.
Com efeito, a Fazenda paulista também fez nascer um mecanismo de bloqueio de emissão de Nota Fiscal Eletrônica,
agora, porém, sempre que dado comprador de mercadoria seja contribuinte
do ICMS e esteja em situação irregular no seu Cadastro de
Contribuintes.
Já quanto ao Estado nordestino, restou estabelecida a impossibilidade
das empresas usineiras de açúcar e álcool, inadimplentes com seus
fornecedores, utilizarem-se de créditos presumidos referentes ao ICMS.
Ou seja, mesmo diante de um momento historicamente alheio ao velho
arquétipo conceitual do poder absoluto, a manifestação deste, por aqui,
parece ainda pulsar, mormente quando a vontade da lei (do povo) vem a
ceder forçosamente espaço à do soberano ou, quando “o príncipe está
isento da lei e o que apraz ao príncipe vigora como lei” (Absolutismo.
Características e Principais Teóricos. Vitor Amorim de Angelo.
www.educacao.uol.com.br/historia/absolutismo-caracteristicas-e-principais-teoricos.jhtm).
Não foram essas, contudo, as intenções proclamadas por nosso Poder
Constituinte Originário quando da promulgação da atual Carta do Povo.
Como é sabido, ao apresentar este mais solene documento jurídico
nacional, vem o seu Preâmbulo assim fazê-lo sob uma rígida estrutura
jus-política de República Federativa assentada na prerrogativa de
constituição de um Estado Democrático de Direito, capaz de assegurar o
exercício, dentre outros, à igualdade e à liberdade, como valores
supremos de uma sociedade fraterna e socialmente harmoniosa.
Nossa primeira aflição decorre do atual bloqueio de emissão de nota fiscal
Esses sentidos axiológico e institucional de República, enquanto tipo
de governo do povo (res publica) foram sensivelmente percebidos por
Roque Antonio Carrazza para quem “numa República, o Estado, longe de ser
o senhor dos cidadãos, é o protetor supremo de seus interesses
materiais e morais. Sua existência não representa um risco para as
pessoas, mas um verdadeiro penhor de suas liberdades” (Curso de Direito
Constitucional Tributário. 27ª ed. rev. amp. e at. até a EC 67/10. São Paulo: Malheiros, 2011, p.67).
Assim sendo, as confiadas e correlatas interferências republicanas no
campo tributário, diretas ou primárias, em face da aplicação da
igualdade e, indiretas ou secundárias, no que toca à efetivação do valor
liberdade, bem justificam nossas presentes preocupações.
Ao nos voltarmos, portanto, às precitadas normas tributárias instituídas pelo município paulistano e pelos Estados de São Paulo e Pernambuco,
sentimo-nos seguros em crer ter ocorrido violação indireta ao atual
espírito republicano nacional, sobretudo por conta da instabilidade
jurídica então deflagrada em face da liberdade de seus respectivos
contribuintes, representada sob as formas: de liberdade incondicional do
exercício de atividades econômica e profissional – expurgada qualquer
forma de seu cerceamento, sob quaisquer grau, extensão e modalidade,
salvo nos casos legais (art.170, p.ú., CF) – e de garantia de sujeição
aos meios processuais assecuratórios legais e diretos do crédito
tributário como condição de seu recebimento, repugnadas quaisquer formas
coercitivas oblíquas e camufladas de sua cobrança (art. 5º, LV, CF).
Por fim, a certeza de não desfiguração das situações legais atinentes à
suspensão da exigibilidade tributária (arts.150, I, CF Código Civil
art.151, CTN) que estivesse a afastar qualquer recolhimento repressivo
imediato.
Sem a confiança na efetividade e na eficiência de nossa plataforma
republicana tal como elevada ao status de atual tipo de governo da
nação, permaneceremos, ao que nos parece, ciclicamente vulneráveis, por
certo, a típicas manifestações ditatoriais de gestão da coisa pública,
então concentrada, de alguma forma, nas mãos de seu soberano, ainda
muito bem representado pela imaginária e temida figura, suprema, do
Leviatã, monstro mitológico simbolicamente inserido por Thomas Hobbes em
sua doutrina secular (contrato social), pró-autoritarismo, enquanto
única e necessária condição de ser do próprio Estado.
Vale lembrar, já encerrando, por aqui, nossas ponderações, que a
instituição da atual República brasileira (da nova ordem) significou,
justamente, uma forma de se apagar os rastros do infeliz modelo
ditatorial que a precedia, especialmente, por conta da aquisição de uma
maior dose de confiança na independência e na estabilidade de nossos
órgãos jurisdicionais, máxime do Supremo Tribunal Federal (STF),
guardião maior que é da atual Carta Política, onde devemos continuar
depositando todas as nossas derradeiras crenças em face de uma pronta
extirpação de quaisquer ameaças, diretas, à igualdade e, indiretas, à
liberdade constitucionais, legitimando-nos, somente assim, a uma
autoproclamação segura de nossa condição indelével de partícipes de uma
República Federativa do Brasil.
*Walter Alexandre Bussamara é mestre em direito tributário pela PUC-SP e advogado em São Paulo
Fonte: Valor Econômico, via Fenancon
http://www.robertodiasduarte.com.br/a-tributacao-coerciva-brasileira/
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