MARIANA CARNEIRO
DE SÃO PAULO
ANA ESTELA DE SOUSA PINTO
DE SÃO PAULO
DE SÃO PAULO
ANA ESTELA DE SOUSA PINTO
DE SÃO PAULO
Autor
da mais recente --e não implantada-- proposta de reforma tributária, o
economista Bernard Appy vê nova chance de governo federal e Estados
enfrentarem o problema em nome da novíssima agenda do país: o resgate da
competitividade.
Em 2008 e 2009, Appy elaborou um proposta que continha desoneração da folha de pagamentos, reforma do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) e unificação dos sistemas de cobrança do PIS/Cofins para um único imposto, não cumulativo (que não é pago mais de uma vez na cadeia produtiva).
Enfrentou resistências e a reforma não vingou. Hoje, o governo emite sinais de que pretende retomar parte da agenda perdida para impulsionar a economia.
Appy prevê resistências, mas defende que só a mudança do PIS/Cofins poderia aumentar o crescimento da economia, nos próximos cinco anos, em 0,5 ponto percentual por ano --um terço do crescimento da economia previsto para este ano (1,5%).
Se, numa tacada, o governo fizesse a reforma do PIS/Cofins, do ICMS e ampliasse a desoneração da folha de pagamentos para todos os setores, o impacto, calcula Appy, seria um PIB 10% maior em um prazo de 10 anos.
"Daqui a dez anos o país pode estar 10% mais rico. Cada brasileiro pode estar 10% mais rico por conta desse tipo de mudança", diz. A seguir, a entrevista.
*
Folha - Quais são os principais problemas fiscais atualmente?
Bernard Appy - O primeiro é o PIS/Cofins. Hoje há um regime que mistura um sistema não cumulativo com um sistema cumulativo.
As
empresas que estão no sistema cumulativo cobram um percentual sobre o
faturamento, que é 3% de Cofins e 0,65% de PIS, e não têm crédito. As
empresas que estão no regime não cumulativo têm um débito de imposto de
9,25% e um crédito de 9,25% de tudo o que elas compram.
Mas
há uma série de restrições sobre o que pode gerar crédito para as
empresas. Pelo sistema brasileiro só gera crédito o que é incorporado
fisicamente à produção física, e isso abre uma enorme discussão entre as
empresas e o fisco sobre o que foi ou não incorporado à produção.
O que seria algo não incorporado?
Vou
dar um exemplo. Todo o gasto de telecomunicações de uma empresa
industrial não gera crédito. É como se isso não fosse custo de produção
para a empresa, só porque não foi incorporado fisicamente ao produto.
O
mesmo critério de aproveitamento do crédito apenas para o que foi
incorporado fisicamente ao produto vale para o ICMS. Tem Estados que não
aceitam, por exemplo, o crédito relativo ao imposto da eletricidade
gasta no escritório, só dão crédito da eletricidade utilizada na
fábrica.
Outro
dia me disseram que um fiscal da Receita não queria aceitar o crédito
da madeira comprada por uma empresa de celulose. É lógico que a empresa
vai ganhar o contencioso, inclusive na esfera administrativa, mas a
própria defesa da empresa tem um custo. A questão sobre o que gera e o
que não gera crédito de ICMS e de PIS e Cofins é hoje um dos grandes
pontos de contencioso entre as empresas e o fisco no país.
Existia algum argumento lógico quando foi determinado isso, quando a legislação fez essa distinção?
A
base lógica era evitar que se contabilizasse como despesa da empresa
gastos pessoais. O fato é que, ao mesmo tempo, você gera com isso uma
enorme complexidade, um enorme contencioso.
Algum outro país relevante faz isso?
Não,
nenhum outro país relevante no mundo adota este critério. Além do
contencioso, a limitação do crédito de PIS/Cofins e de ICMS gera
problemas de cumulatividade. Hoje, pelas normas da OMC [Organização
Mundial do Comércio], um país pode desonerar completamente as
exportações de tributos indiretos, e pode cobrar das importações o mesmo
montante cobrado da produção doméstica, para dar um tratamento igual
entre o produto importado e o produto nacional.
Quando
você tem um sistema como o do Brasil, em que uma parte do que a empresa
compra não gera crédito, paga-se imposto ao longo da cadeia que não é
desonerado da exportação. O país fica menos competitivo. De fato, a
competitividade das empresas brasileiras é duplamente prejudicada pelo
regime brasileiro de limitação dos créditos: pelo efeito da
cumulatividade e pelo custo gerado pela complexidade do sistema e pelos
contenciosos. Aliás, os contenciosos representam um custo não só para as
empresas, mas também para o governo.
De quanto?
Para
as empresas, o custo com advogados e com a mobilização de equipe para
cuidar dos contenciosos é elevado. Para o fisco, este custo também não é
irrelevante, pois uma boa parte dos funcionários das secretarias das
receitas federal e estaduais e das procuradorias se dedica
exclusivamente a estes contenciosos.
Outro
problema que resulta da sobreposição do regime cumulativo e não
cumulativo do PIS/Cofins é a criação de distorções competitivas entre as
próprias empresas. Dependendo da estrutura de custos do setor, pode ser
mais vantajoso ter como fornecedor uma empresa de lucro presumido
(regime cumulativo) ou lucro real (não cumulativo).
Neste
caso, está sendo gerada uma distorção competitiva entre as empresas em
função do modelo tributário, sem que isso gere nenhum benefício
econômico. Eu não contrato o fornecedor que é mais eficiente, que opera
com menor custo, mas sim aquele que, em função da tributação, tem o
menor preço.
Mas dá pra eliminar a cumulatividade do PIS e Cofins?
Dá.
Segundo a imprensa, o governo está estudando migrar todo o PIS/Cofins
para o regime não cumulativo e acabar com as restrições ao crédito. Acho
que a eliminação da cumulatividade é extremamente positiva, mas é
preciso fazer uma transição bem feita, que minimize resistências e não
gere distorções. Essa é uma daquelas mudanças que dá diferença no PIB
potencial do país.
De quanto?
É daquelas sobre as quais é possível dizer: 'o país vai crescer 0,5% a mais por ano durante cinco ou dez anos'.
Só na mudança do PIS/Cofins?
Só
na mudança do PIS/Cofins. Essa é uma daquelas mudanças que faz
diferença no PIB do país. A dificuldade é que a mudança na tributação
gera uma redistribuição da carga tributária. Há uma composição entre
setores eventualmente perdedores e setores ganhadores.
O
setor de serviços, por exemplo, está hoje quase todo no regime não
cumulativo, que tem alíquota mais baixa, e pode se posicionar contra a
mudança se a transição não for bem feita.
Desse
ponto de vista, acho que, na transição, para minimizar as resistências e
os impactos da mudança, pode-se considerar manter o regime cumulativo
para os setores que estão na ponta, no varejo. A forma de tributação na
venda ao consumidor final não faz muita diferença, pois não afeta a
competitividade dos produtos nacionais.
Uma
medida destas certamente contribuiria para reduzir uma eventual
resistência do setor de serviços e do comércio. Em todo caso, seria
preciso conhecer os detalhes da proposta do governo para fazer uma
avaliação mais precisa do modelo que está sendo proposto.
Quais poderiam ser as armadilhas da proposta?
O
fundamental é ter uma transição bem feita. Eu vou dar um exemplo: minha
empresa, que está no regime de lucro presumido, presta serviços de
consultoria para empresas industriais. Nós apuramos PIS/Cofins pelo
regime cumulativo, e não geramos crédito para o cliente, porque o
serviço de consultoria não é incorporado fisicamente à produção.
Com
a mudança, os serviços prestados pela minha empresa vão passar a gerar
crédito. Pode até ser que a alíquota fique mais elevada. Mas como vamos
passar a gerar crédito integral, com certeza a carga tributária dos
nossos clientes vai diminuir, pois hoje eles não têm direito a qualquer
crédito.
Se
a transição for suficientemente longa, então teremos tempo de negociar
os preços como nossos clientes de forma a que tanto minha empresa quanto
o cliente sejam beneficiados com a mudança, ou, pelo menos, de forma a
que ninguém seja prejudicado. Se não houver este período de negociação,
então o cliente será beneficiado, mas minha empresa pode ser prejudicada
por uma carga tributária mais alta.
Você acha que o governo então deveria dizer para a sociedade o que é que é a proposta dele, apresentar antes?
O
debate prévio é importante, mas é preciso cuidado para não criar um
impasse. Quer dizer, as mudanças são muito positivas, mas é possível que
haja setores que fiquem contra, mesmo que não haja aumento da carga
tributária total. A discussão preliminar é positiva, mas é importante
que haja um momento em que o debate seja encerrado, e que o governo de
fato se empenhe na implantação da medida.
Mas você acha que o governo não coloca o debate para evitar impasse?
Não. Acho que estão esperando o momento certo de iniciar o debate e fazer a mudança.
Quando fala transição, fala-se em implantar a reforma de forma progressiva ou dar um tempo até que seja implementada?
Acho que os dois. Acho que é importante o debate prévio e a implantação de forma progressiva. Tem várias formas de fazer.
Pela sua experiência no governo, o quanto essa pressão dos perdedores pode atrapalhar?
Essa
é uma discussão que pode atrapalhar no Congresso. Para minimizar a
resistência no Congresso, é essencial que se entenda o grande benefício
para a economia do país que resulta da medida, para tentar minimizar a
pressão de eventuais perdedores.
A
recente mudança da caderneta de poupança é um bom exemplo. Todo o tempo
em que eu estive no governo ouvi dizer que era politicamente impossível
mudar a poupança. A mudança foi feita e praticamente não gerou
turbulência política. Todo mundo entendeu que era necessário mudar para
poder baixar a taxa de juros no país. A coragem que o governo teve em
enfrentar a questão mostrou que o problema político era muito menor do
que se imaginava.
Agora pelo que você elencou de perdedores, ao que parece, o vencedor seria a indústria?
O
vencedor é a indústria do ponto de vista da competitividade. A
indústria, principalmente a indústria exportadora, vai reduzir a carga
tributária acumulada na cadeia. E mesmo a indústria voltada para o
mercado doméstico, à medida que se aproprie de créditos de que hoje não
se apropria, vai se tornar mais competitiva em relação ao produto
importado. Então eu acho que, diretamente, a indústria é a maior
beneficiada. Agora, indiretamente, é o país como um todo.
Por causa desse efeito no crescimento da economia?
Porque
a mudança gera um efeito positivo sobre a produtividade, além de
reduzir custos. Isso tem um efeito positivo sobre a economia como um
todo.
E também o setor de serviços que fornece para a indústria não perde nada.
Se
a transição for bem feita, o setor de serviço que está no meio da
cadeia, que é fornecedor da indústria, não perde nada. Ao contrário, ele
pode até ganhar, como procurei mostrar com o exemplo da minha empresa.
Por que a alíquota média pode acabar caindo na negociação, como você exemplificou?
Porque
hoje a empresa de serviços paga PIS e Cofins e não gera crédito. Ela
vai passar a gerar crédito. Mesmo que a alíquota fique maior, ela vai
passar a gerar crédito integral, e a carga total paga pela empresa de
serviços e pela empresa que contrata os serviços ficará menor. Na
verdade, além da indústria, o setor de serviços que está no meio da
cadeia com certeza é outro grande ganhador com a mudança.
Agora isso já seria um trabalho grande, uma mudança complexa. Por que não implantar o IVA federal de uma vez e simplificar todos os impostos federais em um único, já que vai mudar?
Era a proposta da reforma tributária de 2008, na qual se propunha a incorporação do PIS e Cofins pelo IVA federal.
Por que não foi até o final?
O
problema é que as contribuições sociais, como é o caso do PIS/Cofins,
têm uma vinculação específica à seguridade social, que é previdência,
assistência e saúde, e os impostos, como o IVA federal, não. Na
proposta, uma parcela do IVA federal e dos demais impostos federais
seria destinada à seguridade, mas mesmo assim houve uma enorme
resistência, do meu ponto de vista totalmente infundada, da área de
seguridade social.
Por quê?
O
argumento do setor é que é importante ter receitas vinculadas
exclusivamente à seguridade, mas, do meu ponto de vista, este é um
argumento infundado, pois a vinculação na prática não elevou as despesas
da seguridade.
As
despesas de saúde hoje estão protegidas pela emenda constitucional 29,
que determina que a cada ano deve ser aplicado em saúde o que foi
alocado no ano anterior, corrigido pelo PIB. Ou seja, as despesas com
saúde não dependem da vinculação de receitas.
As
despesas da previdência dependem das regras para a concessão de
benefícios e não da vinculação de receitas. E a assistência nunca se
beneficiou da vinculação. Vou dar só um exemplo: na época que tinha
CPMF, uma parcela da contribuição, se eu não me engano 0,08% dos 0,38%,
era vinculada ao fundo de combate e erradicação da pobreza.
Antes
do Bolsa Família, sobrava dinheiro no fundo de combate à pobreza, que
não era gasto e gerava superávit primário. Depois, quando acabou a CPMF,
o gasto com o Bolsa Família cresceu independentemente de ter ou não ter
vinculação de receita. Então, o que acontece de fato, é que a
vinculação de receita não garante que você vai de fato fazer aquelas
despesas.
A reforma do ICMS implica redução de carga tributária?
Não.
Esse é um ponto interessante. É o contrário: o fim da guerra fiscal
resulta em aumento da carga tributária. Porque hoje você deixa de
arrecadar R$ 30 bilhões em função de renúncia fiscal.
Portanto,
eu acho que faz sentido que essa discussão de fim de guerra fiscal
venha junto com uma discussão, por exemplo, de como permitir que todas
as aquisições das empresas gerem crédito no ICMS, como o governo está
propondo para o PIS/Cofins. Isso já absorveria uma boa parte do impacto
do aumento da carga tributária que viria do fim da guerra fiscal do
ICMS.
E qual seria o impacto na economia?
Se
toda a agenda do PIS/Cofins e do ICMS for implementada --e também a
desoneração mais ampla da folha de pagamentos-- o impacto estimado seria
de em dez anos poder crescer algo como 1% a mais ao ano. É uma mudança
relevante.
Daqui
a dez anos o país pode estar 10% mais rico. Cada brasileiro pode estar
10% mais rico por conta dessas mudanças. Agora o benefício é difuso. É
muito engraçado porque as pessoas não conseguem entender isso quando
avaliam as mudanças das quais estamos falando. Esse tipo de benefício,
que se reflete em maior eficiência da economia, ninguém consegue
perceber como sendo seu benefício. Mas ele existe. Existe e é relevante.
Fonte: Folha de S.Paulo via http://www.fenacon.org.br/noticias-completas/540
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